terça-feira, 9 de agosto de 2016

O Portal do Destino, ou a (dura?) impossibilidade de anular a nossa trilha existencial



Já fui um grande fã de quadrinhos, durante a adolescência. Da Marvel, acompanhei as melhores fases da equipe X-Men, que era ainda capitaneada pelo seu maior autor de sempre, Chris Claremont, que produzia alta literatura em quadrinhos de verdade. 
Uma das sagas, A Queda dos Mutantes, de forte apelo existencialista, foi o episódio em que os X-men enfrentaram um ser maligno, O Adversário, que lutava contra o mutante e shamã cheyenne (e eventualmente um x-man) Forge e uma deusa de nome Roma. Para encurtar a longa e épica saga, após a vitória contra o inimigo, a agradecida deusa Roma (calma crentasso, não é a Grande Babilônia) dá aos X-men um artefato, o Portal do Destino. Ao passar por tal portal, toda pessoa tem sua vida julgada e pode ter uma nova chance, sim, pode "renascer" numa nova vida, livre de seu passado. 
E o que aconteceu? Com o desenrolar de outros eventos, alguns daqueles seres poderosos, verdadeiros homens-deuses, resolveram deixar para trás suas vidas de heróis. Deixar para trás o fardo da responsabilidade, deixar de ajudar pessoas, deixar poderes inimagináveis, deixar de serem discriminados como mutantes, e simplesmente zerar o contador. O russo Piotr Rasputin, vulgo Colossus, tornou-se um pacato artista plástico, sonho que sempre acalentara; a meiga telepata inglesa Elisabeth Bradock (Psilocke) ressurgiu em um corpo oriental de uma sensual ninja (é a que você pode ver no último filme dos X-men: Apocalypse). Ao fim, tudo embaralhou-se, e o chamado dos heróis para serem o que são acabou prevalecendo; tornaram a ser quem foram, apesar de manterem mudanças significativas, que seria complicado explicar aqui.

Mas tudo isso é para falar do Portal; sempre penso no Portal do Destino, na possibilidade de zerar esta vida e recomeçar, com a mesma idade, noutra. Livre dos fardos, das cicatrizes. Dos grilhões da cultura, mesmo do espírito. Um sonho divertido e impossível, digno apenas de um gibi. Pois só temos uma vida, e o fardo que o próprio existir - essa absurdidade espalhafatosa - representa, recai sobre tudo. Assim foi sonhado por Aquele que a tudo sonhou, que anda entre nós e no entanto está além.
Salomão foi o maior em sabedoria; viu a nudez da existência, e asseverou, num dia rude, algo que reverbera nos genes humanos, raiz existencialista, constatação última em face do colapso que a religião diz ter sido entregue pela Queda: "No entanto, melhor do que ambos é aquele que ainda não nasceu, que não viu o mal que se faz debaixo do sol" (Ec 4.3). Claro, não vá falar disso em seu púlpito ou seminário. Poucos suportam viver na nudez. Lembra do Éden? O próprio Deus nos proveu peles e nos poupou.

Sammis Reachers

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